Friday, December 21, 2007

História de Amor (ùltimos Capítulos), Jean-Luc Lagarce, pelos Artistas Unidos, 2007, Instituto Franco-Português


Quando o eu e a personagem se confudem... quando a personagem é o eu e e o eu a personagem... destinos cruzados... 3 actores, 3 pessoas, 2 homens uma mulher... 6 eus representados... uma história de amor a 3... uma história de amor que se define... que toma forma na indecisão dos espaços que por vezes se tocam... por vezes não... 1 homem que parte... na cidade abandonada parte... o homem contador de histórias... que à beira do suícidio... descobre ser numa história e parte para a escrever... "História de amor" é um livro diz ele... ela ri-se... "é o que está escrito". Ela ri-se... ri-se porque está escrito...


O desdobramento da personagem que se descobre e se define em palco, perante os olhos do espectador... sobre um texto, uma história de amor fícticia, uma história de amor não escrita, mas que se procura levar a cena... que se procura perceber. E´esta é a história da "História de Amor"... esta é a peça... o descobrir em palco do eu da personagem... que se mistura com o actor... e ele é ora actor que representa o actor... ora o actor que representa a personagem... num texto entrecortado... um texto por descobrir... ao estilo dos filmes de David Lynch... um enigma... desta vez levado a palco... com o talento irreprensível de todos os nomes que fazem cartaz para os Artistas Unidos.

Friday, August 10, 2007

Folia! - Mistério de uma noite de Pentecostes


Uma experiência espiritual, estética, gnoseológica, literária... teatral... Há para todos os gostos pronta a consumir, depois de prolongada mastigação...

Texto belissimo, rico em conteúdo(s), encenado num espaço místico e absolutamente arrebatador[Quinta da Regaleira - Sintra] ... Provavelmente a "fórmula de sucesso" que "fez" a peça...

A encenação não está tudo o que poderia ser... os actores não são tudo o que podiam ser... Ainda assim a peça vale, pela capacidade de envolvimento única que cria com o espectador... que mais do que ver, ou assistir à peça... vê-se jogado na peça... com as suas crenças, os seus medos, a sua vivência e visão sociais... vê-se desafiado a ser mais... a "libertar-se das amarras que nos prendem"... desafiar os limites da capacidade humana e realizar no corpo, o império do espírito...


Assim, mais do que a análise dos diferentes aspectos e espaços cénicos que compõem a peça... interessará talvez o silêncio em que cada indivíduo-espectador é tocado... o silêncio em que cada um silenciando, supera o silêncio e descobre o som de tambores que marcam o ritmo da soltura do corpo... numa pura celebração do espírito... em que se descobre a raíz profunda da folia...

Da descoberta de Sebastião como um ser especial... ao "encontro do sol e da lua" em que encontra a sua prometida com que celebra bodas... passando por um caminho povoado de imagens do mundo, sob a declamação de textos de autores portugueses como Agostinho da Silva, Camões, Pessoa... a cena dos diabos, a meu ver projectada para tomarmos impacto com toda a fealdade e fraqueza de cada um... depois desse apelo à libertação, quase deificador, com que a peça toma início... o contacto com a barca dos loucos... onde se comemora a loucura e o rídiculo profundo de cada ser... A peça compõe-se como uma manta de retalhos... em que o elemento unificador é a experiência mística do sujeito. que no fim é convidado a dançar - êxtase em que culmina a peça... Haja folia...
[foto: Sergio Santos]

Sunday, May 27, 2007

"Shortbus"

Nova York - a terra de todas as permissões... descobre-se como terra da
redenção de todos os pecados...

O pequeno e frágil ser humano assume traços de grandeza, numa perversão do real, que lhe é muito própria... num ir em busca do extremo de si mesmo, onde impera o individual incomunicável. Rasga-se a possibilidade do contacto. Vivemos hoje numa sociedade mais fria... porque vivemos hoje na busca individual da nossa esfera de ser própria, alheada do que é comum ao ser de cada humano...


Nova York - a cidade em que não há limites ao alcance da esfera, à exploração do eu. A terra dos "saudáveis" que se torna a cidade dos "não-saudáveis", por atrair a si homens contaminados pelos limites externos de uma moral, de um código comportamental, etc, interessados precisamente em ultrapassar esses limites, violando a ética... e simultaneamente violando-se a si próprios, por procurarem descobrir essa esfera não apartir de si...mas apartir de limites que se descobrem irreais (e logo infrutíferos para a descoberta do eu)... do pecado que se descobre possível e perdoado (na própria possibilidade de realização). O homem contaminado pela perversão da busca de uma liberdade, desde sempre sua... o homem que se que se perverte a si e à realidade que o envolve... pecando contra si mesmo, para se redimir do esmagamento do pecado que desconhece ainda ser ilusório... Pecado que o castrou e contaminou na raíz mais profunda do seu ser... o homem sofredor... o eterno homem sofredor... alheado da raiz da sua dor... em busca... eternamente em busca...



Este é o diálogo entrevisto entre um são - idoso, natural de Nova York... e um não são - jovem, novo nova yorquino, perfeitamente adaptado à esfera de acelaração e glamour, que tenta encontrar o seu par ideal através dos dados informatizados de um pequeno aparelho electrónico, de uso generalizado... "São" e "não são" cruzam-se derivado a um incidente entre o referido aparelho electrónico e pace-maker, num bar - "Shortbus", cuja principal atracção é a possibilidade de experimentar e exprimir livremente a energia sexual, nas suas diferentes expressões (- seguindo as palavras de uma personagem: "entre... e veja... voyerismo também é participar" ).



A sexualidade afirma-se como aspecto central na resolução individual... em torno da vivência e descoberta da sua sexualidade encontram-se personagens contraditórias... que se potenciam mutuamente nessa descoberta: uma sexóloga que nunca experienciou um orgasmo, um homosexual numa relação perfeita incapaz de se deixar penetrar (fisica e emocionalmente), uma prostituta sado-masoquista tímida...


"Shortbus" e a temática sexual são o pano de fundo ao desenvolver destas personagens e desenrolar de uma trama, que termina com a afirmação última da fraqueza e imperfeição de todo o ser humano num ambiente que extrema o kish, que permeia todo o filme. A entrada em cena de uma banda de cortejo, interrompe a canção melódica em que o gerente e dono do "Shortbus" (personagem dotada de grande clarividência) apresenta a sua teoria e visão da realidade, que é no fundo a conclusão do filme. A melodia mescla-se com a alegria da música do cortejo... Porque afinal de contas... "no fim"... "no fim" percebemos todos que nada importa... e percebemos o kish a uma escala única - a recusa da vanidade da existência pela afirmação plástica dessa mesma vanidade.











Sunday, April 15, 2007

Surrealismo [Introdução]

A preocupação do movimento surrealista foi essencialmente a de encontrar novas formas de expressão artística que primassem por uma liberdade de criação, dando resposta a preocupações mais exigentes da actividade humana, onde procura um conhecimento-afirmação do homem como objectivo fundamental. Procuram rever a expressão literária, e em geral todas as formas de expressão artística, nas críticas consecutivas a uma estruturação da arte, em todas as suas formas, no plano cultural como uma simples actividade intelectual. A arte seria actividade e preocupação central do homem, a via para a descoberta de si mesmo e afirmação do seu eu individual em todos os aspectos (frequentemente contraditórios), e nessa afirmação facultaria a conciliação do homem com o cosmos, onde se “dissolveria”[ A realização do indivíduo no cosmos é frequentemente designada pelos surrealistas, especialmente pelos portugueses, como desencadeando um dissolução deste no cosmos] numa harmonia geral de todas as coisas, que não passa pela sua racionalização, que só poderá forçar uma harmonia não conjecturá-la na prática, mas sua experienciação artística como forma de compreensão máxima.
Mas esta dissolução no cosmos não representa contudo uma atenuação das forças contraditórias, que compõe a realidade, e em particular o próprio ser humano, ou o anulamento do indivíduo, mas antes uma reabilitação de todo o particular e contraditório como parte integrante numa instância geral que seria o seu conjunto atingido pela compreensão (conseguida na arte) de cada um, explorando-os.

Surrealismo: O Princípio da Liberdade de Criação

O surrealismo ficou conhecido especialmente pela revolução estética que caracterizava as produções artísticas, que sob os ideais deste movimento se trabalharam. As inovações que apresentou no plano da expressão artística assentavam fundamentalmente num campo de total liberdade de criação, em nome da qual se renegavam formas e fórmulas de criação preestabelecidas, e onde tudo continuamente se revelava permitido em nome da afirmação da força criadora da imaginação. Valorizavam poder de expressão que as obras exerciam, como forma de contacto com a complexidade do real e do psíquico humano que desta forma seria progressivamente desvelada e efectivada, o que só faria sentido mediante uma total liberdade de criação, que passava pela despreocupação estética propriamente dita (renegando o regime escolástico em que a arte se “afundava” pela obediência a padrões a que se submetia) e a despreocupação moral. A arte não teria uma função meramente recreativa, nem estaria confinada a supostas etiquetas do que é ou não arte, mas pode revelar-se no mais simples e despretensioso gesto que sirva a ligação com uma dimensão da realidade e do homem “escondida”, uma dimensão a descobrir. E o gesto criador seria assim a sua força vitalícia, aquilo que nela seria de mais fantástico, e não tanto o produto final.
Vejamos por exemplo um comentário tecido à obra de Artur Seixas (surrealista) aquando uma exposição de artes plásticas deste, em Luanda, que aponta nela características que manifestam, no plano deste tipo de arte, alguns ideais do surrealismo:

«Não se trata das abóboras que habitualmente os alunos bem comportados das Belas-Artes costumam trazer até nós, como amostras de uma pintura real (este real tem sempre muito a ver com a semelhança das cebolas, mas nada a ver com o real autêntico). Esta exposição é, antes de mais um desafio à imaginação. O seu real é um surreal (...). Procurar as realidades que a natureza nos oculta, foi uma missão a que Seixas se propôs, procurando, através dos elementos naturalmente objectivos, uma realidade profundamente subjectiva, em que reconhecemos os passos pictóricos que conduzem a um «acto mágico» a construção de uma realidade cuja raiz é o conhecimento.»[ Alfredo Margarido, Diário Popular, 24-15, ed. Para o Ultramar, in Mário Cesariny, A Intervenção Surrealista, p. 277.]

Era de seu parecer que a compreensão do real teria de passar não por qualquer um dos saberes instituídos que normalmente eram vítimas de severas críticas dos adeptos deste movimento, mas pela acção em todos os campos do saber, reunidos para atingir o que denominaram “Real-Imaginário”, que corresponde à ideia de uma totalidade do real, conjecturada no plano da actividade artística. António Maria Lisboa (surrealista português) classifica de um modo especifico esta necessidade de todos os saberes reunidos num saber que visa conhecer, ou travar algum contacto com esta realidade total, no conceito de Metaciência, característico do pensamento deste autor (que conflui com o surrealismo na sua intencionalidade, nos seus ideais de base - António Maria Lisboa é dos que concordando com os princípios do surrealismo, vem a criticá-lo como movimento, pelas contradições internas entre aqueles que são os seus princípios originais e os vícios que se vão instalando nos seus adeptos e que põem em causa esses princípios. A sua particularização de uma ideia comum entre os surrealistas de reunião de todos os saberes, no conceito de Metaciência, corresponde em certa medida apenas a uma individualização do seu pensamento, não a uma forma diferente de ver.). A Metaciência seria assim uma síntese de todas as ciências, «que como os Surrealistas vê o Universo «UNO E MÁGICO»[ Carta de António Maria Lisboa a Mário Cesariny, Três Poetas do Surrealismo, p.155], concordando com o pensamento poético, que seria segundo os surrealistas a verdadeira via para o conhecimento. (A destacar que, por Poesia pretendem designar uma atitude – a atitude poética, e não a forma de expressão particular, poesia. Esta é também uma via para a compreensão, mas não pretendem elevá-la como preferencial numa espécie de escala das artes... O Poeta é em geral o homem das artes, no sentido em que é aquele que dá atenção a uma parte especial do ser humano, explorando-a.)

«A Metaciência pretende entre outras coisas dar ao Homem, ao Poeta a sua posição no Centro da Esfera deste Universo, que é o mesmo que dizer fazer com que o Poeta possua no seu cérebro todos os raios da esfera deste universo.(...)
«Os Poetas são os únicos «filósofos» que podem dizer o que falta (dizer e saber) – à «fixação da realidade» prefere-se uma cada vez mais funda e vertiginosa, mais funda e vertiginosa, mais funda e vertiginosa [repetição do próprio autor] conquista do conhecimento do homem que o mesmo é dizer do universo, pois este é a projecção do Homem e o Homem a Concreção do Universo a um Ponto.
(...)
«A Metaciência é ainda a realização do Pensamento Poético e do conhecimento Poético!»[ Ibidem, p.157.]

A designação de Real-Imaginário foi encontrada no Comunicado dos Surrealistas Portugueses datado de Abril de 1950, emitido em Lisboa, sob a assinatura de Mário Henrique Leiria, João Artur Silva e Artur do Cruzeiro Seixas (a este último transcreveu-se mais acima um comentário à sua obra no domínio das artes plásticas), publicado actualmente na obra Três Poetas do Surrealismo. Contudo designa um lugar comum das crenças surrealistas, de conjugação do plano da simples realidade que é, a realidade substancial, com a realidade fundamentada na força da imaginação, podendo ser também encontrada em diversos textos de outros autores surrealistas, embora não sob o enunciado deste neologismo que liga pelo hífen os dois conceitos exprimindo a sua conjugação na ideia de uma totalidade, comum ao pensamento surrealista (veja-se aliás o sentido etimológico da própria palavra – super-realismo, que designaria uma sobre-realidade, como frequentemente a designam os surrealistas).
Com o Real-Imaginário pretende-se exprimir precisamente esse ponto de encontro entre os dois pólos da realidade, os dois hemisférios do Sonho e da Realidade (substancial), em que a imaginação deixa de contrastar com a realidade, como se a desfigurasse ou fosse uma simples abstracção de carácter emotivo ou recreativo, mas se liga nela na ideia de uma realidade total, que deve ser o seu objecto de conhecimento. Os princípios de criação surrealistas inscrevem-se precisamente no objectivo da conquista progressiva desta totalidade pela consideração das suas partes contraditórias, em vez de optar por anula-las na consideração especifica de um saber. A atitude a tomar perante algo que se visa conhecer não será a de procurar defini-lo, ou extrair dele algum critério de uma suposta verdade. Não será a atitude de fixação desse algo no conhecimento que se possa extrair dele, mas descobrir os caminhos que esse algo nos abre, e percorre-los sem as preocupações de linearidade (em que se inscrevem as preocupações com a moral, ou qualquer código social), ou os medos da loucura[O surrealismo concorda, no que diz respeito à forma de encarar a loucura, com as noções de loucura do movimento de anti-psiquiatria. É de seu parecer que a loucura é apenas um desrespeito pelos modos, socialmente aceites, de comportamento. Os loucos seriam vítimas da sua imaginação, mas no sentido em que o elevado desenvolvimento desta (o que não é negativo) os leva à inobservância de certas regras aceites pela sociedade em que vive, que o homem valoriza ao ponto de desconsiderar (e o conceito de loucura, bem como o internamento dos loucos, serviria precisamente para isso) aqueles que as desconsideram.].

«Quero que se calem quando deixam de sentir.»[ André Breton, Manifestos do Surrealismo, p.31.]

Designar-se-ia deste modo uma surrealidade, que seria portanto esse género de realidade total em que estes hemisférios estariam ligados, completando-se. A realidade como é deixa escapar todas as suas potencialidades, aparecendo aos adeptos do surrealismo[Qualquer surrealista seria mais precisamente apenas um adepto do surrealismo, pois que o surrealismo era contra qualquer tipo de academismo, e neste sentido os artistas surrealistas mantinham ainda uma determinada independência relativamente ao movimento, embora realizassem frequentemente, nomeadamente no trabalho de escrita, actividades em conjunto. Contudo visavam com estas apenas um aprofundamento pessoal de cada um, a fim de um melhoramento próprio, e desta forma um melhoramento geral da própria actividade surrealista. Apesar da preocupação central com o individual, e a manutenção de uma liberdade e consciência individual, o surrealismo não nega a existência de uma consciência colectiva, apenas defende que esta terá de partir do individual, das consciências particulares, e não impor-se-lhes, e manter ainda a liberdade de acção movimento de cada um dos seus componentes. Daí as suas críticas acérrimas às preocupações racionais, morais e estéticas, que entendiam como limitadoras da actividade do indivíduo, e fixadoras de modos de ver e fazer, e o seu desejo de revolucionar a sociedade, sem que contudo se preocupem em apresentar ideais e valores alternativos que não seja aquele pelo qual fazem a revolução – a liberdade.] como redutora, esquecendo o sujeito que a contempla. Por outro lado, dever-se-ia instruir uma atitude materialista como reacção contra «algumas tendências irrisórias do espiritualismo»[ André Breton, Manifestos do Surrealismo, p.28.], desde que esta mantenha ainda possível a elevação do pensamento. Ou seja o que se pretende não é simplesmente uma atitude de abstracção perante a realidade substancial, a realidade formalizada no que é (naquilo que é) efectivamente ou pelo menos tradicionalmente, o que acontece é que essa abstracção é necessária para o conhecimento.

«A Obra surrealista continua a ser, para que seja, não um arranjo ou procura estética ou, como ouvi, um “materializar de emoções puras”, mas uma conquista no domínio do conhecimento e da acção.» António Maria Lisboa.[ Declaração de Princípios (emitido em Lisboa em 1975), in Três Poetas do Surrealismo, p.183. ]

Surrealismo: Reconciliação do indivíduo com o cosmos

(...)«o sonho surrealista reenvia indubitável e implicitamente para o grande mito das épocas unitárias, enlaçando inextrincavelmente a aventura individual, mesmo a do mais humilde dos homens, e o cósmico, num conjunto de realidades fictícias e de ficções reais, onde cada acontecimento era um signo, numa atmosfera de magia em que as palavras e os gestos desencadeavam misteriosas correntes de electricidade mental.»[ Jules-François Dupuis, História desenvolta do Surrealismo, p.44.]

Invocando a realidade interior do homem como importante meio de descoberta da realidade exterior, e inserindo-as numa esfera de realidade maior (porque englobando ambas dá mais conta dos fenómenos da realidade em todos os seus aspectos) é o próprio homem que é reconciliado com essa realidade, pois são valorizadas todas as perspectivas que possa ter dela. Ele não é somente um elemento dentro da realidade, mas pela força da sua imaginação e as suas forças criadoras surge como elemento de transmutação das coisas, num sistema de interacção com elas, onde explora a realidade e se explora a si mesmo. Onde a própria dimensão subjectiva é considerada, e se pretende explorar, como forma de dissolução do indivíduo, e das suas contradições internas, através do Sonho, na Realidade total.

«O homem põe e dispõe. Só a ele cabe pertencer-se todo inteiro, isto é, manter em estado anárquico a faixa cada vez mais temível dos seus desejos. A poesia ensina-lho.» [André Breton, Manifestos do Surrealismo, p.39.]
Desta forma também a linguagem (que é também uma segunda realidade), associada ao plano subjectivo de conhecimento das coisas toma uma importância particular, se afastada da pretensão de definir, mas forem exploradas as suas próprias potencialidades como meio de pensamento, e de exposição do pensamento do indivíduo. A palavra está assim antes de mais ligada à realidade interior, à realidade subjectiva em que a realidade exterior é perspectivada, e descoberta nas suas variadas hipóteses. O modo de se associar à realidade exterior depende antes de mais do indivíduo que a associa, e estas associações devem ser aprofundadas em todas as suas possibilidades, ao invés de ficarem restringidas a regras formais de aplicação, sendo que assim é a própria realidade que sai da forma que a enclausura, e se expande em todas as vias de perspectivá-la, e em todas as suas hipóteses escondidas, que a diversidade do sujeito permite conceber.
A palavra que designa determinado objecto não é facultada pelo próprio objecto, contudo permite dele um conhecimento para além da sua simples materialidade. Mas deve estar também para além do reconhecimento desse objecto pela palavra.

«A virtude da palavra (da escrita, muito mais) parecia-me depender da faculdade de encurtar de modo surpreendente a exposição (pois que havia exposição) de uns poucos factos, poéticos ou outros, de que me tornava substância.»[ Ibidem, p.41]

As palavras materializam, de certa forma, toda uma vastidão de experiências espirituais da realidade sendo no discurso do pensamento, que se pode ou não traduzir literariamente para um texto, via para o seu aprofundamento, reforçando as imagens sendo que muitas vezes estas se formam precisamente pelo poder de associação livre das palavras, como um acto espontâneo, se ao falar ou escrever o sujeito esqueça a pretensão de dar um sentido lógico ao seu discurso. O discurso deve corresponder tanto quanto possível à livre forma do pensamento. Deve desenrolar-se com ele numa actividade em que a inconsciência predomina sobre a consciência, em que a preocupação com o dizer e o explicar se pretende nula, e o ser humano está assim em contacto com as suas próprias forças ocultas de pensamento, e são elas que tão directamente quanto possível falam nele.

Este ponto de vista parte do pressuposto que o inconsciente tem uma organização própria da realidade, que não se encontra subjacente à organização consciente que na melhor das hipóteses procuraria compreendê-la embora que com esse esforço a desfigurasse, mas uma organização se pode dar ao consciente de uma maneira livre e misturar-se com ele de uma sem a necessidade de um controle da razão mas tão espontânea como lhe tinha sido dada. Sentir poeticamente as mensagens que o inconsciente liberta seria compreendê-las na própria organização que o consciente faz delas, sem o complexo de retirar delas uma verdade específica, mas deixá-las em aberto como fonte de sensações que podem sempre ser diversas sendo que seriam sempre válidas.

«Nos limites em que se exerce (ou passa por se exercer), segundo todas as aparências, o sonho é contínuo e tem o sinal da organização. Só a memória se arroga ao direito de lhe fazer cortes, não ter em conta as transições e de nos apresentar mais uma série de sonhos do que o sonho.»[ André Breton, Manifestos do Surrealismo, p.33.]

(Este sonho, é como já dissemos, não é necessariamente o produto onírico, mas é este que deriva do sonho como realidade para lá da simples realidade substancial, e que se oferece ao conhecimento sempre que as forças da consciência como forças de racionalização das coisas, se esvanecem.)
O que os surrealistas pretendem não é tanto uma interpretação das mensagens que passam do inconsciente, pois no seu parecer a relação dessas mensagens com a realidade dá-se com mais força pela sensação do que pela racionalização. A interpretação é um esforço de trazer essas mensagens à compreensão pela força de as submeter ao parecer racional das coisas, mas o que estas têm de especial é precisamente escaparem a esse parecer, por isso extrair-lhes uma compreensão pelo acto de interpretar seria de certa forma contraditório. A compreensão seria espontânea e estaria sempre em aberto. Compreender seria sentir, e nesse sentir era estabelecida uma relação com a realidade sem o esforço de delinear a realidade ou essa ligação.
A reconciliação do homem com o cosmos seria estabelecida não pela razão, mas pelo sentir, em que seria o homem por inteiro que seria reconciliado, e não apenas o homem subtraído de uma das usas capacidades – a capacidade de raciocinar. O homem não é fundamentalmente essa capacidade, nem esta define a sua especificidade relativamente aos animais. Todas as capacidades, especificidades, e características importam à sua reconciliação com a realidade.

As Imagens Surrealistas e o seu Papel na Compreensão do Real

A função da palavra seria não a de conceptualizar, pois que toda a conceptualização, como sistema de fixação seria insuficiente para compreender a realidade e até redutora desta e da própria palavra, mas a de desvendar progressivamente aquilo que transcende a realidade substancial, através de associações aleatórias de termos aparentemente contraditórios, criando novas imagens da realidade que alargam o universo de compreensão das coisas por compreender-lhes uma dimensão escondida, ou seja uma dimensão com a qual não temos contacto simplesmente pela actividade consciente. Por compreender-lhes realidades que não são dadas na própria coisa como comumente a percepcionamos, mas que o podem ser, pela linguagem como forma de interacção com o real[A linguagem não é desta forma desconsiderada pelos surrealistas, uma vez que é precisamente por ela que se permite o exercício da imaginação.], através da imaginação, ou melhor da manifestação livre e involuntária (no sentido em que não se controla conscientemente - O sujeito deveria abandonar-se tanto quanto possível ao trabalho da imaginação nele, diminuindo a actividade da consciência, e o seu exercício de controle sobre o seu dizer para que fosse preferencialmente o seu inconsciente a falar.) da imaginação, que é concebida como uma força integrante da própria realidade. A realidade substancial – aquela que nos é dada pela actividade consciente, não se basta a si mesma para um conhecimento, pois esquece factores que a extravasam, mas que permanecem como factores a explorar dentro da realidade.
Através da linguagem o sujeito poderia interagir com a realidade, pois de certa forma apoderava-se dela ao deixá-la ter expressão através de uma construção subjectiva. A realidade não é só a forma material das figuras, mas as suas criaturas, as suas coisas, são também absorvidas nessa que constitui uma sua segunda realidade (e que nem por isso seria inferior à primeira). A interacção com as figuras só por si não nos diz nada dessa realidade, sendo uma interacção vazia. É só quando a realidade toma um nome, um sinal, que o ser humano se apodera dela, pode pensá-la, dize-la (não só pela maneira comum das palavras, mas também pelas artes musicais, ou pelas plásticas). Mas esta realidade não deve subjugar-se à condição de nomear elementos da realidade substancial. Através dela abre-se todo um novo campo de realidade, mais ligado ao espiritual, e aos elementos do possível.

«Quando o nome de toda a criatura seja mais do que número e figura» [ Mário Cesariny(organização), Três Poetas do Surrealismo, exortação de capa.]

«Para o Mago, os conceitos de Forma e de Matéria são vibração. Pensar na morte do organismo, tal como se apresenta, eis aí a sua função positiva.»[ Texto colectivo de António Maria Lisboa, Henrique Risques Pereira, Mário Cesariny e Pedro Oom, in Mário Cesariny, A intervenção Surrealista, p.107.]

A linguagem não tem de ficar subjugada à realidade substancial, mas as suas forças expressivas devem ser aproveitadas para explorar a realidade do sonho. O uso mais valorizado da linguagem seria assim aquele que mais a libertasse das forças organizadoras do consciente.

Pela linguagem o sujeito poderia, por exemplo, associar aspectos aparentemente contraditórios, fazendo-os surgir ligados. Mas não é à própria realidade, como esta nos é dada e dela temos conhecimento conscientemente, que é perspectivada. Ou seja, estas associações não têm por fundamento uma realidade apreendida conscientemente, mas uma realidade escondida de possibilidades, uma surrealidade, que é criada pelo exercício da imaginação na criação destas associações, formando imagens.
A estas chamou-se imagens surrealistas, pois permitem compreender os dois pólos da realidade – o Sonho e a Realidade, conjugando-os numa espécie de realidade total para a qual se caminharia através da actividade do movimento surrealista, e que é precisamente a conjugação desses dois pólos opostos pela compreensão através do sentir do Sonho, da realidade que toma forma pela imaginação. A intenção não seria atingir uma sobre-realidade no sentido em que esta estivesse fora da realidade, fosse uma realidade à parte, mas compreender essa realidade à parte, que é a realidade do Sonho, como integrada na realidade total, o que abre só então uma sobre-realidade.
Mas esta compreensão não se atinge pelo esforço de racionalização, mesmo que nele se conjecture uma ligação da realidade inconsciente com a realidade consciente, pois esta ligação quando compreendida racionalmente, por ligá-las segundo padrões da parte consciente do ser humano, forma apenas uma ligação forçada.
(A mensagem do inconsciente deve ser compreendida à luz da inconsciência.)

«Em cima da ponte embalava-se o orvalho de cabeça de gato.» André Breton. [Exemplo citados pelo próprio André Breton no Primeiro Manifesto Surrealista, publicado nos Manifestos do Surrealismo, p. 61.]

Nesta imagem surrealista podemos encontrar duas associações estranhas (à forma comum) de elementos: o embalar do orvalho, e o orvalho de cabeça de gato. Estas associações não podem ser consideradas simplesmente como metáforas pois a relação de semelhança entre elas não seria subentendida. Se se consegue retirar dela alguma explicação formal, esta não estaria presente nela a priori como uma intencionalidade especifica. A associação seria completamente fortuita, realizada num processo que nomearam de escrita automática, ou seja um processo em que o dizer normalmente escrito, mas não necessariamente, correria automaticamente com o mínimo de racionalização e de esforço de criação de sentido possível.

«Temos pois que admitir que os dois termos da imagem não são deduzidos um do outro pelo espírito tendo em vista a faísca [termo utilizado para exprimir o efeito de choque entre si dos elementos associados] a produzir, que são produtos simultâneos da actividade a que chamo surrealista, limitando-se a razão a verificar e apreciar o fenómeno luminoso.»[ André Breton, Manifestos do Surrealismo, p.59.]

Podemos classificar inúmeros tipos de imagens destas, em função do efeito especial específico pela qual atingem essa relação e ligação de elementos aparentemente contraditórios, mas o essencial de cada uma seria a sua comum virtude de viabilizar ao espírito a força de tudo abarcar, desconcertando-o na sua comum actividade, e provando-lhe insistentemente que não tem razão de cada vez que fixa as coisas numa determinada organização, que qualquer forma rígida de ver a realidade fica aquém de toda a potência desta. Neste sentido uma imagem seria tanto mais forte quanto maior for o seu grau de arbitrariedade, pois seria mais difícil de traduzir em linguagem prática, mantendo esse valor de desconcerto pela enorme contradição (aparente), ou porque tira de si uma justificação formal irrisória, ou até porque é de ordem alucinatória.
A imaginação funcionaria para os surrealistas como uma via de passagem para o conhecimento consciente de realidades inconscientes no ser humano, relembrando nesta criação de imagens o método psicanalítico da associação de ideias, segundo o qual determinada ideia, não contida explicitamente noutra poderia ser-lhe associada para exprimir uma organização do inconsciente. O sujeito associaria livremente a um objecto ou uma ideia, que lhe seriam dados, todos os objectos ou ideias que lhe surgissem à mente. Esta associação livre, sendo que a actividade do consciente seria tanto quanto possível minimizada, serviria para que o inconsciente pudesse exprimir-se e desenvolver o material organizado pela exposição.
Os surrealistas apelam frequentemente às teorias e descobertas do pensamento freudiano, a nível do conhecimento do ser humano, para fazer compreender princípios de crença do seu próprio pensamento, mas à qual tecem também algumas críticas nomeadamente à preocupação terapêutica desta que, por um esforço de método na compreensão do inconsciente, a desvirtualizaria, transformando o seu conteúdo por força-lo a uma justificação no plano da realidade substancial. Justificação essa que muitas vezes pode nem sequer existir. Cada acto e cada dizer bastar-se-ia a si mesmo como justificação. A sua possibilidade justificá-lo-ia.

«Parece-me que qualquer acto tem em si mesmo a sua justificação, pelo menos para quem foi capaz de o cometer, e que é dotado de um poder irradiante que a mais pequena glosa por natureza enfraquecerá. Com esta, ele deixa até, de certo modo, de se produzir.»[ Ibidem, p.31.]

Podemos encontrar desta forma dois movimentos da relação do automatismo psíquico (como método geral de expressão do inconsciente) e o inconsciente: um em que este exprimiria uma organização patente no inconsciente que teria a ver com a recepção de informações da realidade a outro nível, sendo que se trataria de uma organização similar à realizada na actividade consciente, e outra em que a organização é a relação possível de todas as coisas realizada pela imaginação. O surrealismo tende a compreender os dois, embora critique severamente as interpretações terapêuticas extraídas pelo método psicanalítico do primeiro, nomeadamente quando as mensagens são compreendidas como um código para exprimir realidades reprimidas pela actividade consciente. É de seu parecer que a mensagem do inconsciente conteria uma visão particular e única dessa realidade compreendida pelo sentimento, que poderá escapar à lógica comum das coisas.

« - trago-te Brilhante-Estrela-Sem-Destino coberta de
musgo» [António Maria Lisboa, Poesia, p.63.]

Poder-se-ia compreender esta mensagem interpretando-se metaforicamente o musgo pela sua conotação de velhice e reserva de algo. Podemos ainda ir mais além e compreendê-la como expressão de um sentimento. Contudo é da opinião dos surrealistas que este tipo de associação não tem de ter forçosamente uma interpretação e até que muitas vezes a interpretação cerraria o conteúdo da mensagem em padrões. Que muitas vezes não tem sequer de corresponder a uma intencionalidade, mesmo que inconsciente. A «Brilhante-Estrela-Sem-Destino» do poema pode estar associada ao musgo segundo um modo inteiramente fortuito, ou seja sem que exprima uma mensagem a ser compreendida pela lógica da realidade como a conhecemos conscientemente.
É do seu parecer que a interpretação psicanalista cerra a mensagem por força-la a tomar a forma de uma realidade exprimível segundo a lógica da realidade do consciente. E mesmo que se debruce sobre um modo de sentir do homem, sujeita-a ainda aos padrões desta lógica, esquecendo todo um espiritualismo, toda uma outra facção da realidade que se esconde “por trás” da simples realidade substancial, e que não tem só a ver com fenómenos psicológicos de recalcamento de determinados conteúdos não aceites conscientemente. Que não tem somente a ver com memórias de associações, ou qualquer forma prévia de organização de aspectos da realidade substancial, mas com organizações subliminares da realidade como um todo, em que não é só a parte substancial que conta, embora seja esta aquela de que mais obviamente damos conta, e aquela que mais facilmente nos dá algum conhecimento fixo, ao qual o homem por receio da loucura e de uma total dispersão própria, tem tendência a se agarrar.
Mas seria precisamente num certo estado de loucura, em que nada se apresenta submetido à rígida constância e em que as coisas fluem no seu conhecimento, sabendo-se que esse estado se encontra latente em cada indivíduo, que ele atinge a máxima libertação dos limites que o atrofiam a si próprio, e máxima unidade de conhecimento. O objectivo surrealista é o do «aniquilamento do ser num esplendor, interior e cego, que já não seja nem a alma do espelho nem a do fogo» [André Breton, Manifestos do Surrealismo, p.152.]. Este aniquilamento é precisamente o conhecimento do inconsciente. É precisamente aquilo que obtemos pelo desenvolvimento da imaginação como uma força sua.

«Tudo leva a crer que existe um determinado ponto do espírito donde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser apreendidos contraditoriamente.» [Ibidem, p.152.]

Surrealismo: Linguagem do Pensamento

A linguagem do pensamento seria assim essa linguagem do inconsciente onde não funcionam fórmulas preestabelecidas de concepção de coisa alguma, até porque as coisas não estão delimitadas e cerradas no seu campo de realidade individual, que é uma violência da consciência sobre a realidade, mas estendem-se “disformes”, compreendendo-se na sua relação (múltipla) com as outras não por um sistema de contradições, mas precisamente por uma liberdade de ligações. E para trazer esse tipo de organização das coisas, presente no inconsciente, seria precisamente esta a linguagem a usar.
Neste sentido, e no plano da arte escrita que foi aquele que mais atentamente foi estudado, o trabalho da palavra no discurso seria automático, precisamente para anular as coercivas forças da consciência o mais possível. A palavra seria despojada de uma intencionalidade de dizer própria, ou pelo menos esta seria secundária e não deveria ser perspectivada na construção de um texto. O seu encadeamento deveria ser conforme a essa forma de estar própria do inconsciente.

«Escreva depressa sem assunto prévio (...) em cada segundo existe uma frase estranha ao nosso pensamento consciente que só deseja exteriorizar-se.» [André Breton, Manifestos do Surrealismo, p.51.]

Consegue-se assim um discurso sem uma exactidão lógica, em que o absurdo predomina como forma de desconcerto do espírito, e embora algumas vezes se possa força-lo a tomar um sentido compreensível racionalmente, este fenómeno apresenta-se como casual e fora do sentido original de construção do discurso.

«Devo dizer que anoitecia. Os eléctricos começavam a subir pelo espaço com uma obrigatória sensação de enjoo. Quando as casas se desmoronam é observável um brevíssimo momento luz na pálpebra do último a desfalecer (desde que desfaleça esmagado).» [Mário Cesariny, A intervenção Surrealista, (Texto Automático)p.104).]

As palavras devem-se deixar correr livres (de intencionalidade, do respeito por regras de construção de um discurso e da submissão ao sentido) tanto quanto possível no discurso, para seguirem maximamente à letra a linguagem do pensamento. Devem encadear-se uma nas outras tal como nos surgem no pensamento, quando a ele nos abandonamos, em vez de nele cobrarmos determinado seguimento, objecto... Devemos fazer um silêncio máximo de todas as nossas forças controladoras, para seguir a enchente de palavras, sensações e ideias.
O sentimento predominará na construção do discurso, mas isto não significa que este se reserva à expressão de afectividades, precisamente porque o sentir não está subjacente à realidade substancial mas aparece como uma via de realidade que transcende a simples matéria. A sensação de enjoo com que os eléctricos subiam pelo espaço não é dada como um fenómeno da realidade, sentido como enjoo. A imagem criada tem já como “matéria” [no sentido em que é da matéria que as obras são criadas. Apesar da criação destas imagens partir de uma associação livre de palavras, em que o homem não deve exercer qualquer actividade de controle, este surge ainda como seu potenciador. Não se trata de imagens que surgem do nada. Têm por fundamento a força criadora do homem.] a mão do homem como seu criador, e força transformadora. Não é o próprio objecto que fala em nós através de um qualquer impacto que nos tenha criado. Somos nós que lhe damos esse impacto na actividade consciente, porque pudemos tê-lo interiormente. Porque sentimos de certa maneira um deserto entre o que as coisas são efectivamente, a palavra que lhes atribuímos, e aquilo que delas podemos sentir, e que elas nos podem dizer quando as calamos para nos ouvir.
E ao ouvirmo-nos é precisamente essa linguagem mágica que faz o indivíduo perder contacto com as formas da realidade, que cria imagens alucinantes que lhe embriagam o espírito com a sua novidade, e o raptam para um êxtase em que tudo conflui numa abstracção mais plena em que se fundem as duas facções da realidade na transubstanciação da matéria.
Criticando a tradição filosófica de desvalorização da palavra face à própria coisa que nesta se pretenderia exprimir, propõem uma alternativa segundo a qual a própria coisa, no que é materialmente, é desvalorizada por ficar aquém de tudo o que pode ser para o homem. A palavra abre na própria realidade novas perspectivas sobre ela. É um sistema de reconciliação do indivíduo com o cosmos, e é desta forma que deve ser perspectivada. A própria coisa está fora da realidade particular íntima do sujeito. Não é na sua esfera que ele se move já, as palavras desprendem-se da própria coisa como uma esfera em que esta é dotada de espiritualidade e tem mais significado do que a sua simples figura, da qual se liberta. Não é às próprias coisas que se dirige a sua aplicação mais elevada, mas a um certo impacto no sujeito, que é desfigurado.

«Toujours avant toujours avant
porque para escrever até é preciso usar palavras – organizações.
Poço de inquietação – com a inevitabilidade característica.
Inquietação latente ou agressiva – um poço nem mais nem
menos. E o resto, o inexplicável, que caísse redondo no
chão, morto e meio devorado – que nem por isso as
coisas se passariam de outro modo, que nem por isso
as coisas se explicariam porque – e se fosse só porque.

Nem explicações desejo – desejar: só o que é desejável – como
uma consequência feliz do não-ser, uma quinta coluna
do pensamento metido em pastilhas, que se chupam nas
salas de reuniões de artistas porcos, faladores e vorazes.» [ Carlos Calvet, in Mário Cesariny (organização), Três Poetas do Surrealismo, p. 153]
(...)

As palavras não devem portanto ficar submetidas às coisas. Dirigem-se a todo um universo do inexplicável do qual são também matéria pela qual com a força humana, este vem à luz do semi-exprimível (– porque fica sempre algo por dizer, mas há algo que é dito sem que fique cerrado naquilo que exprime, mas que abre precisamente esse universo).

(...)«numa sociedade tão falsa, numa vida tão absurda como a que nos fazem as leis, os costumes as instituições, as conveniências dela, afectar nas palavras a exactidão, a lógica, a rectidão que não há nas coisas, é a maior e a mais perniciosa de todas as incoerências.» [Ibidem, p.208]

Friday, April 13, 2007

Pina Bausch, For the Children [7 de Abril, Teatro Camões]

O primeiro espectáculo de dança que assisti ao vivo e a cores…

Pensar o que nos falta pensar… ver o que nos falta ver…
Mais uma vez, bate-me à porta a certeza de que me falta ver tudo e que o tempo é pouco para sentir tudo o que há a sentir… no pouco que posso ver…
Mais uma oportunidade de pensar a fragilidade do gesto que corre no tempo… decomposto em todas as suas partes impossíveis… as suas partes mundo…

Na dança… descubro ser ainda mais real esta realidade de que tudo na vida são gestos frágeis… que se atropelam no tempo das suas partes… nas suas mil partes… impossíveis de tocar, de sentir… [porcaria de enquadramento espacio-temporal que nos ditou assim…]
Na dança… entrar na espiral contínua… uma enxurrada de ideias, de coisas, de sentires… jorra em todos os sentidos… quanto mais se pensa, se cava, se explora… mais enxurrada… mais espiral… Na dança… esta verdade, que é a verdade de todas as coisas… é ainda mais real… é como se a dança fosse a personificação da enxurrada presente em todas as coisas [e mais uma vez a tese da não separação das artes… da profunda ligação de todas as diferentes dimensões… representar dançando uma pintura… pintar uma dança representando… filosofar arte… construindo arte… construir arte filosofando… descrevendo ideias… etc, etc… que esta ideia não tem fim…]

O espectáculo termina como começa… [soube depois, porque como boa portuguesa… convém chegar tarde] Só podia terminar como começa… o único fim possível, quando a marca indelével… o cunho de todo o gesto… foi uma representação alegórica da vanidade de tudo o que é. O amor, o apaixonado, a inutilidade do amor, o amor supremo que te dá asas, a rejeição, a solidão… tudo com o cunho da vanidade… Mas não uma vanidade triste! Essa nem um pouco… Uma vanidade… nietzschiana, como talvez o seja todo o espectáculo.
O homem-criança deste espectáculo, parece-me ser o homem no limiar da perda da ilusão:
Uma mulher e o seu alter-ego desenham, naquelas fantásticas portas transparentes que se abrem e fecham ao fundo (numa indecisão de quem quer libertar, e de quem não quer…), dois corações trespassados cada um por uma seta (que determina como óbvio o seu paralelismo). Um de acordo com a perspectiva da medicina, da fisiologia, com as suas diferentes partes… e um outro de acordo com as regras e suspiros dos apaixonados… a mulher que desenha este coração, curiosamente na porta direita (lado da razão – invocando mais uma antítese… de entre as muitas que enriqueceram este espectáculo), escreve de forma apaixonada a palavra love à volta do seu desenho… toda ela entregue a este amor… a este deleite de estar apaixonado… à inocência de amar… a outra mulher… alter-ego da primeira, combate a despique cada palavra love escrita, decompondo o coração nas suas diferentes partes: aorta, ventrículo… mulher e alter- ego entreolham-se… suspense de segundos… uma resposta respirada… pequena indignação… gradualmente o compasso de espera entre a acção de uma e de outra é anulado… elas sobrepõem-se… entram em êxtase das suas visões próprias… o mundo de cada uma fecha-se… e vence o amor! Mas não é uma vitória inocente… é uma vitória abandonada… uma vitória dolorosa… de solidão… A mulher fica sozinha no palco… com o seu vestido transparente lindíssimo, decorado com folhas (invocando qui ça uma Eva no seu paraíso)… da indumentária feminina do espectáculo, o que mais se afasta da estética alemã de cores vivas e flores garridas, tecidos vaporosos… lentamente o seu corpo ganha expressão… a mulher solta-se em movimentos longos, circulares… há um momento de expressão corporal belíssimo, reforçado inevitavelmente pela transparência e pela paixão que a personagem tinha despertado anteriormente com a sua inocência, a sua defesa vigorosa do amor…
Junta-se-lhe um par… Há um momento arrastado de junção de corpos… um movimento excelente de ligação de pescoços… (aproximando o plexo solar, a zona do amor incondicional)… por fim… o homem propõe-se como suporte para o voo da mulher, que se deita de barriga apoiada nas suas costas dobradas… os seus braços erguem-se como asas, definindo movimentos ascendentes no ar… percorrem o palco neste voo… juntam-se-lhes outros voos outros pares… entrecruzam-se e organizam-se num movimento circular… uma roda de pequenos voos conseguidos na duplicidade, no nós que forma cada casal… mas agora é um voo conseguido na individualidade… já não é necessário suporte… o indivíduo descobre que consegue voar sozinho… forma-se nova roda…
O indivíduo descobre com o outro o seu voo… para de seguida descobrir que esse voo se faz só… descobre o todo, na roda que se forma, para logo de seguida perder esse mesmo todo, à medida que a roda se escoa… e cada indivíduo continua no palco o seu voo, a sua rota… e se cruza na sua solidão, com outros, sem que haja qualquer troca de olhares, sorrisos… simplesmente os voos são regulados na sua direcção para evitar o espaço do outro… o movimento em palco é fluido… belo… regulado… o voo descobre-se frio.

Numa situação de dança de grupo, em que o homem comemora a sua infantilidade, brincando com a água, encontramos uma situação de cruel rejeição… quando perante o sorriso espantado de uma mulher… que se mostra ao homem… ele lhe cospe água para cima… A crueldade infantil? Talvez… Mas em que é a crueldade infantil é menor do que a do adulto? Essa atitude de desdém perante o outro… atropelando-o com as brincadeiras… entrando em choque directo com o seu jogo… sobrepondo-se ao jogo do outro…

A efemeridade é comemorada quando, para finalizar a primeira parte do espectáculo, entra em cena um castelo de areia… um casal vai docemente continuando a construção de areia… Fazendo de baldes de areia formas, constroem novos muros, novos telhados, novas torres… junta-se-lhes novo casal… e pouco a pouco a construção fica povoada de gente que no meio de uma grande confusão, vai dando o seu contributo para a construção do grande e frágil castelo de areia… O amor contamina?

Estes momentos de irónica magia, são entrecortados por momentos que propiciam o riso… reprodução fiel da existência humana: drama e riso… Apolo e Dionísos… Simultaneamente servem de descompressão, permitindo abrir o espírito para a nova intensidade que sempre se segue… [sobretudo na segunda parte]

Durante todo o espectáculo cada personagem joga a sua própria linguagem… nos momentos de liberdade é chamado a expressá-la… cada um joga os seus movimentos próprios… e alternadamente cada movimento vai contagiando o outro, até que se gera consonância ora de um ora de outro gesto… mas a linguagem de cada um é uma constante… chamada a acontecer, por momentos… fazendo-me recordar o eterno retorno nietzschiano: o homem dança… mas o seu movimento é circular… regressa à expressão de um mesmo movimento… que sendo mesmo, se apresenta como novidade… e é vivido como novidade… mas o olhar atento, não deixa escapar… é o mesmo movimento… é a linguagem de cada personagem, de cada dançarino… é a expressão própria e real dos seus corpos em cena, arranjada de acordo com efeitos da estética, que lhe dão mais impacto e força… mas ali está ele o mesmo movimento…

O homem-criança deste espectáculo, é a personificação viva do super-homem de Nietzsche: aceita o eterno retorno, joga nele… joga com a vanidade, com a efemeridade… descobre-se só… e aceita a sua solidão… ironiza, mas sem por isso perder o seu cunho de humanidade, que é a sua sensibilidade… experienciada sem a necessidade de refúgio.

O cenário despido e estrategicamente organizado é fluído… a estética é profundamente alemã… os dançarinos são excelentes… a coreógrafa… intensa… o espectáculo está sem dúvida memorável… e despertou-me o apetite para mais…