Sunday, April 15, 2007

As Imagens Surrealistas e o seu Papel na Compreensão do Real

A função da palavra seria não a de conceptualizar, pois que toda a conceptualização, como sistema de fixação seria insuficiente para compreender a realidade e até redutora desta e da própria palavra, mas a de desvendar progressivamente aquilo que transcende a realidade substancial, através de associações aleatórias de termos aparentemente contraditórios, criando novas imagens da realidade que alargam o universo de compreensão das coisas por compreender-lhes uma dimensão escondida, ou seja uma dimensão com a qual não temos contacto simplesmente pela actividade consciente. Por compreender-lhes realidades que não são dadas na própria coisa como comumente a percepcionamos, mas que o podem ser, pela linguagem como forma de interacção com o real[A linguagem não é desta forma desconsiderada pelos surrealistas, uma vez que é precisamente por ela que se permite o exercício da imaginação.], através da imaginação, ou melhor da manifestação livre e involuntária (no sentido em que não se controla conscientemente - O sujeito deveria abandonar-se tanto quanto possível ao trabalho da imaginação nele, diminuindo a actividade da consciência, e o seu exercício de controle sobre o seu dizer para que fosse preferencialmente o seu inconsciente a falar.) da imaginação, que é concebida como uma força integrante da própria realidade. A realidade substancial – aquela que nos é dada pela actividade consciente, não se basta a si mesma para um conhecimento, pois esquece factores que a extravasam, mas que permanecem como factores a explorar dentro da realidade.
Através da linguagem o sujeito poderia interagir com a realidade, pois de certa forma apoderava-se dela ao deixá-la ter expressão através de uma construção subjectiva. A realidade não é só a forma material das figuras, mas as suas criaturas, as suas coisas, são também absorvidas nessa que constitui uma sua segunda realidade (e que nem por isso seria inferior à primeira). A interacção com as figuras só por si não nos diz nada dessa realidade, sendo uma interacção vazia. É só quando a realidade toma um nome, um sinal, que o ser humano se apodera dela, pode pensá-la, dize-la (não só pela maneira comum das palavras, mas também pelas artes musicais, ou pelas plásticas). Mas esta realidade não deve subjugar-se à condição de nomear elementos da realidade substancial. Através dela abre-se todo um novo campo de realidade, mais ligado ao espiritual, e aos elementos do possível.

«Quando o nome de toda a criatura seja mais do que número e figura» [ Mário Cesariny(organização), Três Poetas do Surrealismo, exortação de capa.]

«Para o Mago, os conceitos de Forma e de Matéria são vibração. Pensar na morte do organismo, tal como se apresenta, eis aí a sua função positiva.»[ Texto colectivo de António Maria Lisboa, Henrique Risques Pereira, Mário Cesariny e Pedro Oom, in Mário Cesariny, A intervenção Surrealista, p.107.]

A linguagem não tem de ficar subjugada à realidade substancial, mas as suas forças expressivas devem ser aproveitadas para explorar a realidade do sonho. O uso mais valorizado da linguagem seria assim aquele que mais a libertasse das forças organizadoras do consciente.

Pela linguagem o sujeito poderia, por exemplo, associar aspectos aparentemente contraditórios, fazendo-os surgir ligados. Mas não é à própria realidade, como esta nos é dada e dela temos conhecimento conscientemente, que é perspectivada. Ou seja, estas associações não têm por fundamento uma realidade apreendida conscientemente, mas uma realidade escondida de possibilidades, uma surrealidade, que é criada pelo exercício da imaginação na criação destas associações, formando imagens.
A estas chamou-se imagens surrealistas, pois permitem compreender os dois pólos da realidade – o Sonho e a Realidade, conjugando-os numa espécie de realidade total para a qual se caminharia através da actividade do movimento surrealista, e que é precisamente a conjugação desses dois pólos opostos pela compreensão através do sentir do Sonho, da realidade que toma forma pela imaginação. A intenção não seria atingir uma sobre-realidade no sentido em que esta estivesse fora da realidade, fosse uma realidade à parte, mas compreender essa realidade à parte, que é a realidade do Sonho, como integrada na realidade total, o que abre só então uma sobre-realidade.
Mas esta compreensão não se atinge pelo esforço de racionalização, mesmo que nele se conjecture uma ligação da realidade inconsciente com a realidade consciente, pois esta ligação quando compreendida racionalmente, por ligá-las segundo padrões da parte consciente do ser humano, forma apenas uma ligação forçada.
(A mensagem do inconsciente deve ser compreendida à luz da inconsciência.)

«Em cima da ponte embalava-se o orvalho de cabeça de gato.» André Breton. [Exemplo citados pelo próprio André Breton no Primeiro Manifesto Surrealista, publicado nos Manifestos do Surrealismo, p. 61.]

Nesta imagem surrealista podemos encontrar duas associações estranhas (à forma comum) de elementos: o embalar do orvalho, e o orvalho de cabeça de gato. Estas associações não podem ser consideradas simplesmente como metáforas pois a relação de semelhança entre elas não seria subentendida. Se se consegue retirar dela alguma explicação formal, esta não estaria presente nela a priori como uma intencionalidade especifica. A associação seria completamente fortuita, realizada num processo que nomearam de escrita automática, ou seja um processo em que o dizer normalmente escrito, mas não necessariamente, correria automaticamente com o mínimo de racionalização e de esforço de criação de sentido possível.

«Temos pois que admitir que os dois termos da imagem não são deduzidos um do outro pelo espírito tendo em vista a faísca [termo utilizado para exprimir o efeito de choque entre si dos elementos associados] a produzir, que são produtos simultâneos da actividade a que chamo surrealista, limitando-se a razão a verificar e apreciar o fenómeno luminoso.»[ André Breton, Manifestos do Surrealismo, p.59.]

Podemos classificar inúmeros tipos de imagens destas, em função do efeito especial específico pela qual atingem essa relação e ligação de elementos aparentemente contraditórios, mas o essencial de cada uma seria a sua comum virtude de viabilizar ao espírito a força de tudo abarcar, desconcertando-o na sua comum actividade, e provando-lhe insistentemente que não tem razão de cada vez que fixa as coisas numa determinada organização, que qualquer forma rígida de ver a realidade fica aquém de toda a potência desta. Neste sentido uma imagem seria tanto mais forte quanto maior for o seu grau de arbitrariedade, pois seria mais difícil de traduzir em linguagem prática, mantendo esse valor de desconcerto pela enorme contradição (aparente), ou porque tira de si uma justificação formal irrisória, ou até porque é de ordem alucinatória.
A imaginação funcionaria para os surrealistas como uma via de passagem para o conhecimento consciente de realidades inconscientes no ser humano, relembrando nesta criação de imagens o método psicanalítico da associação de ideias, segundo o qual determinada ideia, não contida explicitamente noutra poderia ser-lhe associada para exprimir uma organização do inconsciente. O sujeito associaria livremente a um objecto ou uma ideia, que lhe seriam dados, todos os objectos ou ideias que lhe surgissem à mente. Esta associação livre, sendo que a actividade do consciente seria tanto quanto possível minimizada, serviria para que o inconsciente pudesse exprimir-se e desenvolver o material organizado pela exposição.
Os surrealistas apelam frequentemente às teorias e descobertas do pensamento freudiano, a nível do conhecimento do ser humano, para fazer compreender princípios de crença do seu próprio pensamento, mas à qual tecem também algumas críticas nomeadamente à preocupação terapêutica desta que, por um esforço de método na compreensão do inconsciente, a desvirtualizaria, transformando o seu conteúdo por força-lo a uma justificação no plano da realidade substancial. Justificação essa que muitas vezes pode nem sequer existir. Cada acto e cada dizer bastar-se-ia a si mesmo como justificação. A sua possibilidade justificá-lo-ia.

«Parece-me que qualquer acto tem em si mesmo a sua justificação, pelo menos para quem foi capaz de o cometer, e que é dotado de um poder irradiante que a mais pequena glosa por natureza enfraquecerá. Com esta, ele deixa até, de certo modo, de se produzir.»[ Ibidem, p.31.]

Podemos encontrar desta forma dois movimentos da relação do automatismo psíquico (como método geral de expressão do inconsciente) e o inconsciente: um em que este exprimiria uma organização patente no inconsciente que teria a ver com a recepção de informações da realidade a outro nível, sendo que se trataria de uma organização similar à realizada na actividade consciente, e outra em que a organização é a relação possível de todas as coisas realizada pela imaginação. O surrealismo tende a compreender os dois, embora critique severamente as interpretações terapêuticas extraídas pelo método psicanalítico do primeiro, nomeadamente quando as mensagens são compreendidas como um código para exprimir realidades reprimidas pela actividade consciente. É de seu parecer que a mensagem do inconsciente conteria uma visão particular e única dessa realidade compreendida pelo sentimento, que poderá escapar à lógica comum das coisas.

« - trago-te Brilhante-Estrela-Sem-Destino coberta de
musgo» [António Maria Lisboa, Poesia, p.63.]

Poder-se-ia compreender esta mensagem interpretando-se metaforicamente o musgo pela sua conotação de velhice e reserva de algo. Podemos ainda ir mais além e compreendê-la como expressão de um sentimento. Contudo é da opinião dos surrealistas que este tipo de associação não tem de ter forçosamente uma interpretação e até que muitas vezes a interpretação cerraria o conteúdo da mensagem em padrões. Que muitas vezes não tem sequer de corresponder a uma intencionalidade, mesmo que inconsciente. A «Brilhante-Estrela-Sem-Destino» do poema pode estar associada ao musgo segundo um modo inteiramente fortuito, ou seja sem que exprima uma mensagem a ser compreendida pela lógica da realidade como a conhecemos conscientemente.
É do seu parecer que a interpretação psicanalista cerra a mensagem por força-la a tomar a forma de uma realidade exprimível segundo a lógica da realidade do consciente. E mesmo que se debruce sobre um modo de sentir do homem, sujeita-a ainda aos padrões desta lógica, esquecendo todo um espiritualismo, toda uma outra facção da realidade que se esconde “por trás” da simples realidade substancial, e que não tem só a ver com fenómenos psicológicos de recalcamento de determinados conteúdos não aceites conscientemente. Que não tem somente a ver com memórias de associações, ou qualquer forma prévia de organização de aspectos da realidade substancial, mas com organizações subliminares da realidade como um todo, em que não é só a parte substancial que conta, embora seja esta aquela de que mais obviamente damos conta, e aquela que mais facilmente nos dá algum conhecimento fixo, ao qual o homem por receio da loucura e de uma total dispersão própria, tem tendência a se agarrar.
Mas seria precisamente num certo estado de loucura, em que nada se apresenta submetido à rígida constância e em que as coisas fluem no seu conhecimento, sabendo-se que esse estado se encontra latente em cada indivíduo, que ele atinge a máxima libertação dos limites que o atrofiam a si próprio, e máxima unidade de conhecimento. O objectivo surrealista é o do «aniquilamento do ser num esplendor, interior e cego, que já não seja nem a alma do espelho nem a do fogo» [André Breton, Manifestos do Surrealismo, p.152.]. Este aniquilamento é precisamente o conhecimento do inconsciente. É precisamente aquilo que obtemos pelo desenvolvimento da imaginação como uma força sua.

«Tudo leva a crer que existe um determinado ponto do espírito donde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser apreendidos contraditoriamente.» [Ibidem, p.152.]

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