Sunday, April 15, 2007

Surrealismo: Reconciliação do indivíduo com o cosmos

(...)«o sonho surrealista reenvia indubitável e implicitamente para o grande mito das épocas unitárias, enlaçando inextrincavelmente a aventura individual, mesmo a do mais humilde dos homens, e o cósmico, num conjunto de realidades fictícias e de ficções reais, onde cada acontecimento era um signo, numa atmosfera de magia em que as palavras e os gestos desencadeavam misteriosas correntes de electricidade mental.»[ Jules-François Dupuis, História desenvolta do Surrealismo, p.44.]

Invocando a realidade interior do homem como importante meio de descoberta da realidade exterior, e inserindo-as numa esfera de realidade maior (porque englobando ambas dá mais conta dos fenómenos da realidade em todos os seus aspectos) é o próprio homem que é reconciliado com essa realidade, pois são valorizadas todas as perspectivas que possa ter dela. Ele não é somente um elemento dentro da realidade, mas pela força da sua imaginação e as suas forças criadoras surge como elemento de transmutação das coisas, num sistema de interacção com elas, onde explora a realidade e se explora a si mesmo. Onde a própria dimensão subjectiva é considerada, e se pretende explorar, como forma de dissolução do indivíduo, e das suas contradições internas, através do Sonho, na Realidade total.

«O homem põe e dispõe. Só a ele cabe pertencer-se todo inteiro, isto é, manter em estado anárquico a faixa cada vez mais temível dos seus desejos. A poesia ensina-lho.» [André Breton, Manifestos do Surrealismo, p.39.]
Desta forma também a linguagem (que é também uma segunda realidade), associada ao plano subjectivo de conhecimento das coisas toma uma importância particular, se afastada da pretensão de definir, mas forem exploradas as suas próprias potencialidades como meio de pensamento, e de exposição do pensamento do indivíduo. A palavra está assim antes de mais ligada à realidade interior, à realidade subjectiva em que a realidade exterior é perspectivada, e descoberta nas suas variadas hipóteses. O modo de se associar à realidade exterior depende antes de mais do indivíduo que a associa, e estas associações devem ser aprofundadas em todas as suas possibilidades, ao invés de ficarem restringidas a regras formais de aplicação, sendo que assim é a própria realidade que sai da forma que a enclausura, e se expande em todas as vias de perspectivá-la, e em todas as suas hipóteses escondidas, que a diversidade do sujeito permite conceber.
A palavra que designa determinado objecto não é facultada pelo próprio objecto, contudo permite dele um conhecimento para além da sua simples materialidade. Mas deve estar também para além do reconhecimento desse objecto pela palavra.

«A virtude da palavra (da escrita, muito mais) parecia-me depender da faculdade de encurtar de modo surpreendente a exposição (pois que havia exposição) de uns poucos factos, poéticos ou outros, de que me tornava substância.»[ Ibidem, p.41]

As palavras materializam, de certa forma, toda uma vastidão de experiências espirituais da realidade sendo no discurso do pensamento, que se pode ou não traduzir literariamente para um texto, via para o seu aprofundamento, reforçando as imagens sendo que muitas vezes estas se formam precisamente pelo poder de associação livre das palavras, como um acto espontâneo, se ao falar ou escrever o sujeito esqueça a pretensão de dar um sentido lógico ao seu discurso. O discurso deve corresponder tanto quanto possível à livre forma do pensamento. Deve desenrolar-se com ele numa actividade em que a inconsciência predomina sobre a consciência, em que a preocupação com o dizer e o explicar se pretende nula, e o ser humano está assim em contacto com as suas próprias forças ocultas de pensamento, e são elas que tão directamente quanto possível falam nele.

Este ponto de vista parte do pressuposto que o inconsciente tem uma organização própria da realidade, que não se encontra subjacente à organização consciente que na melhor das hipóteses procuraria compreendê-la embora que com esse esforço a desfigurasse, mas uma organização se pode dar ao consciente de uma maneira livre e misturar-se com ele de uma sem a necessidade de um controle da razão mas tão espontânea como lhe tinha sido dada. Sentir poeticamente as mensagens que o inconsciente liberta seria compreendê-las na própria organização que o consciente faz delas, sem o complexo de retirar delas uma verdade específica, mas deixá-las em aberto como fonte de sensações que podem sempre ser diversas sendo que seriam sempre válidas.

«Nos limites em que se exerce (ou passa por se exercer), segundo todas as aparências, o sonho é contínuo e tem o sinal da organização. Só a memória se arroga ao direito de lhe fazer cortes, não ter em conta as transições e de nos apresentar mais uma série de sonhos do que o sonho.»[ André Breton, Manifestos do Surrealismo, p.33.]

(Este sonho, é como já dissemos, não é necessariamente o produto onírico, mas é este que deriva do sonho como realidade para lá da simples realidade substancial, e que se oferece ao conhecimento sempre que as forças da consciência como forças de racionalização das coisas, se esvanecem.)
O que os surrealistas pretendem não é tanto uma interpretação das mensagens que passam do inconsciente, pois no seu parecer a relação dessas mensagens com a realidade dá-se com mais força pela sensação do que pela racionalização. A interpretação é um esforço de trazer essas mensagens à compreensão pela força de as submeter ao parecer racional das coisas, mas o que estas têm de especial é precisamente escaparem a esse parecer, por isso extrair-lhes uma compreensão pelo acto de interpretar seria de certa forma contraditório. A compreensão seria espontânea e estaria sempre em aberto. Compreender seria sentir, e nesse sentir era estabelecida uma relação com a realidade sem o esforço de delinear a realidade ou essa ligação.
A reconciliação do homem com o cosmos seria estabelecida não pela razão, mas pelo sentir, em que seria o homem por inteiro que seria reconciliado, e não apenas o homem subtraído de uma das usas capacidades – a capacidade de raciocinar. O homem não é fundamentalmente essa capacidade, nem esta define a sua especificidade relativamente aos animais. Todas as capacidades, especificidades, e características importam à sua reconciliação com a realidade.

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