Friday, April 13, 2007

Pina Bausch, For the Children [7 de Abril, Teatro Camões]

O primeiro espectáculo de dança que assisti ao vivo e a cores…

Pensar o que nos falta pensar… ver o que nos falta ver…
Mais uma vez, bate-me à porta a certeza de que me falta ver tudo e que o tempo é pouco para sentir tudo o que há a sentir… no pouco que posso ver…
Mais uma oportunidade de pensar a fragilidade do gesto que corre no tempo… decomposto em todas as suas partes impossíveis… as suas partes mundo…

Na dança… descubro ser ainda mais real esta realidade de que tudo na vida são gestos frágeis… que se atropelam no tempo das suas partes… nas suas mil partes… impossíveis de tocar, de sentir… [porcaria de enquadramento espacio-temporal que nos ditou assim…]
Na dança… entrar na espiral contínua… uma enxurrada de ideias, de coisas, de sentires… jorra em todos os sentidos… quanto mais se pensa, se cava, se explora… mais enxurrada… mais espiral… Na dança… esta verdade, que é a verdade de todas as coisas… é ainda mais real… é como se a dança fosse a personificação da enxurrada presente em todas as coisas [e mais uma vez a tese da não separação das artes… da profunda ligação de todas as diferentes dimensões… representar dançando uma pintura… pintar uma dança representando… filosofar arte… construindo arte… construir arte filosofando… descrevendo ideias… etc, etc… que esta ideia não tem fim…]

O espectáculo termina como começa… [soube depois, porque como boa portuguesa… convém chegar tarde] Só podia terminar como começa… o único fim possível, quando a marca indelével… o cunho de todo o gesto… foi uma representação alegórica da vanidade de tudo o que é. O amor, o apaixonado, a inutilidade do amor, o amor supremo que te dá asas, a rejeição, a solidão… tudo com o cunho da vanidade… Mas não uma vanidade triste! Essa nem um pouco… Uma vanidade… nietzschiana, como talvez o seja todo o espectáculo.
O homem-criança deste espectáculo, parece-me ser o homem no limiar da perda da ilusão:
Uma mulher e o seu alter-ego desenham, naquelas fantásticas portas transparentes que se abrem e fecham ao fundo (numa indecisão de quem quer libertar, e de quem não quer…), dois corações trespassados cada um por uma seta (que determina como óbvio o seu paralelismo). Um de acordo com a perspectiva da medicina, da fisiologia, com as suas diferentes partes… e um outro de acordo com as regras e suspiros dos apaixonados… a mulher que desenha este coração, curiosamente na porta direita (lado da razão – invocando mais uma antítese… de entre as muitas que enriqueceram este espectáculo), escreve de forma apaixonada a palavra love à volta do seu desenho… toda ela entregue a este amor… a este deleite de estar apaixonado… à inocência de amar… a outra mulher… alter-ego da primeira, combate a despique cada palavra love escrita, decompondo o coração nas suas diferentes partes: aorta, ventrículo… mulher e alter- ego entreolham-se… suspense de segundos… uma resposta respirada… pequena indignação… gradualmente o compasso de espera entre a acção de uma e de outra é anulado… elas sobrepõem-se… entram em êxtase das suas visões próprias… o mundo de cada uma fecha-se… e vence o amor! Mas não é uma vitória inocente… é uma vitória abandonada… uma vitória dolorosa… de solidão… A mulher fica sozinha no palco… com o seu vestido transparente lindíssimo, decorado com folhas (invocando qui ça uma Eva no seu paraíso)… da indumentária feminina do espectáculo, o que mais se afasta da estética alemã de cores vivas e flores garridas, tecidos vaporosos… lentamente o seu corpo ganha expressão… a mulher solta-se em movimentos longos, circulares… há um momento de expressão corporal belíssimo, reforçado inevitavelmente pela transparência e pela paixão que a personagem tinha despertado anteriormente com a sua inocência, a sua defesa vigorosa do amor…
Junta-se-lhe um par… Há um momento arrastado de junção de corpos… um movimento excelente de ligação de pescoços… (aproximando o plexo solar, a zona do amor incondicional)… por fim… o homem propõe-se como suporte para o voo da mulher, que se deita de barriga apoiada nas suas costas dobradas… os seus braços erguem-se como asas, definindo movimentos ascendentes no ar… percorrem o palco neste voo… juntam-se-lhes outros voos outros pares… entrecruzam-se e organizam-se num movimento circular… uma roda de pequenos voos conseguidos na duplicidade, no nós que forma cada casal… mas agora é um voo conseguido na individualidade… já não é necessário suporte… o indivíduo descobre que consegue voar sozinho… forma-se nova roda…
O indivíduo descobre com o outro o seu voo… para de seguida descobrir que esse voo se faz só… descobre o todo, na roda que se forma, para logo de seguida perder esse mesmo todo, à medida que a roda se escoa… e cada indivíduo continua no palco o seu voo, a sua rota… e se cruza na sua solidão, com outros, sem que haja qualquer troca de olhares, sorrisos… simplesmente os voos são regulados na sua direcção para evitar o espaço do outro… o movimento em palco é fluido… belo… regulado… o voo descobre-se frio.

Numa situação de dança de grupo, em que o homem comemora a sua infantilidade, brincando com a água, encontramos uma situação de cruel rejeição… quando perante o sorriso espantado de uma mulher… que se mostra ao homem… ele lhe cospe água para cima… A crueldade infantil? Talvez… Mas em que é a crueldade infantil é menor do que a do adulto? Essa atitude de desdém perante o outro… atropelando-o com as brincadeiras… entrando em choque directo com o seu jogo… sobrepondo-se ao jogo do outro…

A efemeridade é comemorada quando, para finalizar a primeira parte do espectáculo, entra em cena um castelo de areia… um casal vai docemente continuando a construção de areia… Fazendo de baldes de areia formas, constroem novos muros, novos telhados, novas torres… junta-se-lhes novo casal… e pouco a pouco a construção fica povoada de gente que no meio de uma grande confusão, vai dando o seu contributo para a construção do grande e frágil castelo de areia… O amor contamina?

Estes momentos de irónica magia, são entrecortados por momentos que propiciam o riso… reprodução fiel da existência humana: drama e riso… Apolo e Dionísos… Simultaneamente servem de descompressão, permitindo abrir o espírito para a nova intensidade que sempre se segue… [sobretudo na segunda parte]

Durante todo o espectáculo cada personagem joga a sua própria linguagem… nos momentos de liberdade é chamado a expressá-la… cada um joga os seus movimentos próprios… e alternadamente cada movimento vai contagiando o outro, até que se gera consonância ora de um ora de outro gesto… mas a linguagem de cada um é uma constante… chamada a acontecer, por momentos… fazendo-me recordar o eterno retorno nietzschiano: o homem dança… mas o seu movimento é circular… regressa à expressão de um mesmo movimento… que sendo mesmo, se apresenta como novidade… e é vivido como novidade… mas o olhar atento, não deixa escapar… é o mesmo movimento… é a linguagem de cada personagem, de cada dançarino… é a expressão própria e real dos seus corpos em cena, arranjada de acordo com efeitos da estética, que lhe dão mais impacto e força… mas ali está ele o mesmo movimento…

O homem-criança deste espectáculo, é a personificação viva do super-homem de Nietzsche: aceita o eterno retorno, joga nele… joga com a vanidade, com a efemeridade… descobre-se só… e aceita a sua solidão… ironiza, mas sem por isso perder o seu cunho de humanidade, que é a sua sensibilidade… experienciada sem a necessidade de refúgio.

O cenário despido e estrategicamente organizado é fluído… a estética é profundamente alemã… os dançarinos são excelentes… a coreógrafa… intensa… o espectáculo está sem dúvida memorável… e despertou-me o apetite para mais…

4 comments:

sophiarui said...

gostei mesmo muito da tuia descrição! apeteceu-me ainda mais ver pina bausch e ler nietzsche.

huummm e se te propusesses para fazer crítica de arte? era uma boa ideia... pensa nisso...

sophiarui said...

"o bailarino retoma o seu corpo nesse momento preciso em que perde o seu equilíbrio e se arrisca a cair no vazio. Luta, jogando tudo por tudo: está em jogo a sua vida, a sua liberdade de bailarino, a sua luz. Faz apelo ao movimento, que proporcionará claridade e estabilidade à sua extrema agitação interior. Por meio do movimento domará o movimento: com um gesto libertará a velocidade e arrebatará o seu corpo traçando uma forma de espaço. Uma forma de espaço-corpo efémero, por cima do abismo."

In, GIL, José,"Movimento Total - o corpo e a dança",relógio d'água,2001

rota_aérea said...

Uau... obrg!!! Pelo comentário dinamizador... e pela partilha de saberes... gostei mto deste José Gil... hum... tenho que ler mais... ;)

Um abrç... rota de crescimento... ;)

Yshua said...

Uau!! Aqui andava eu, perfeitamente convencido de que não apreciava espectáculos de dança, pelo menos nenhum que tenha visto até agora... E agora duvido da imagem do meu Eu que guardava...

:D Obrigado!