Sunday, April 15, 2007

Surrealismo: Linguagem do Pensamento

A linguagem do pensamento seria assim essa linguagem do inconsciente onde não funcionam fórmulas preestabelecidas de concepção de coisa alguma, até porque as coisas não estão delimitadas e cerradas no seu campo de realidade individual, que é uma violência da consciência sobre a realidade, mas estendem-se “disformes”, compreendendo-se na sua relação (múltipla) com as outras não por um sistema de contradições, mas precisamente por uma liberdade de ligações. E para trazer esse tipo de organização das coisas, presente no inconsciente, seria precisamente esta a linguagem a usar.
Neste sentido, e no plano da arte escrita que foi aquele que mais atentamente foi estudado, o trabalho da palavra no discurso seria automático, precisamente para anular as coercivas forças da consciência o mais possível. A palavra seria despojada de uma intencionalidade de dizer própria, ou pelo menos esta seria secundária e não deveria ser perspectivada na construção de um texto. O seu encadeamento deveria ser conforme a essa forma de estar própria do inconsciente.

«Escreva depressa sem assunto prévio (...) em cada segundo existe uma frase estranha ao nosso pensamento consciente que só deseja exteriorizar-se.» [André Breton, Manifestos do Surrealismo, p.51.]

Consegue-se assim um discurso sem uma exactidão lógica, em que o absurdo predomina como forma de desconcerto do espírito, e embora algumas vezes se possa força-lo a tomar um sentido compreensível racionalmente, este fenómeno apresenta-se como casual e fora do sentido original de construção do discurso.

«Devo dizer que anoitecia. Os eléctricos começavam a subir pelo espaço com uma obrigatória sensação de enjoo. Quando as casas se desmoronam é observável um brevíssimo momento luz na pálpebra do último a desfalecer (desde que desfaleça esmagado).» [Mário Cesariny, A intervenção Surrealista, (Texto Automático)p.104).]

As palavras devem-se deixar correr livres (de intencionalidade, do respeito por regras de construção de um discurso e da submissão ao sentido) tanto quanto possível no discurso, para seguirem maximamente à letra a linguagem do pensamento. Devem encadear-se uma nas outras tal como nos surgem no pensamento, quando a ele nos abandonamos, em vez de nele cobrarmos determinado seguimento, objecto... Devemos fazer um silêncio máximo de todas as nossas forças controladoras, para seguir a enchente de palavras, sensações e ideias.
O sentimento predominará na construção do discurso, mas isto não significa que este se reserva à expressão de afectividades, precisamente porque o sentir não está subjacente à realidade substancial mas aparece como uma via de realidade que transcende a simples matéria. A sensação de enjoo com que os eléctricos subiam pelo espaço não é dada como um fenómeno da realidade, sentido como enjoo. A imagem criada tem já como “matéria” [no sentido em que é da matéria que as obras são criadas. Apesar da criação destas imagens partir de uma associação livre de palavras, em que o homem não deve exercer qualquer actividade de controle, este surge ainda como seu potenciador. Não se trata de imagens que surgem do nada. Têm por fundamento a força criadora do homem.] a mão do homem como seu criador, e força transformadora. Não é o próprio objecto que fala em nós através de um qualquer impacto que nos tenha criado. Somos nós que lhe damos esse impacto na actividade consciente, porque pudemos tê-lo interiormente. Porque sentimos de certa maneira um deserto entre o que as coisas são efectivamente, a palavra que lhes atribuímos, e aquilo que delas podemos sentir, e que elas nos podem dizer quando as calamos para nos ouvir.
E ao ouvirmo-nos é precisamente essa linguagem mágica que faz o indivíduo perder contacto com as formas da realidade, que cria imagens alucinantes que lhe embriagam o espírito com a sua novidade, e o raptam para um êxtase em que tudo conflui numa abstracção mais plena em que se fundem as duas facções da realidade na transubstanciação da matéria.
Criticando a tradição filosófica de desvalorização da palavra face à própria coisa que nesta se pretenderia exprimir, propõem uma alternativa segundo a qual a própria coisa, no que é materialmente, é desvalorizada por ficar aquém de tudo o que pode ser para o homem. A palavra abre na própria realidade novas perspectivas sobre ela. É um sistema de reconciliação do indivíduo com o cosmos, e é desta forma que deve ser perspectivada. A própria coisa está fora da realidade particular íntima do sujeito. Não é na sua esfera que ele se move já, as palavras desprendem-se da própria coisa como uma esfera em que esta é dotada de espiritualidade e tem mais significado do que a sua simples figura, da qual se liberta. Não é às próprias coisas que se dirige a sua aplicação mais elevada, mas a um certo impacto no sujeito, que é desfigurado.

«Toujours avant toujours avant
porque para escrever até é preciso usar palavras – organizações.
Poço de inquietação – com a inevitabilidade característica.
Inquietação latente ou agressiva – um poço nem mais nem
menos. E o resto, o inexplicável, que caísse redondo no
chão, morto e meio devorado – que nem por isso as
coisas se passariam de outro modo, que nem por isso
as coisas se explicariam porque – e se fosse só porque.

Nem explicações desejo – desejar: só o que é desejável – como
uma consequência feliz do não-ser, uma quinta coluna
do pensamento metido em pastilhas, que se chupam nas
salas de reuniões de artistas porcos, faladores e vorazes.» [ Carlos Calvet, in Mário Cesariny (organização), Três Poetas do Surrealismo, p. 153]
(...)

As palavras não devem portanto ficar submetidas às coisas. Dirigem-se a todo um universo do inexplicável do qual são também matéria pela qual com a força humana, este vem à luz do semi-exprimível (– porque fica sempre algo por dizer, mas há algo que é dito sem que fique cerrado naquilo que exprime, mas que abre precisamente esse universo).

(...)«numa sociedade tão falsa, numa vida tão absurda como a que nos fazem as leis, os costumes as instituições, as conveniências dela, afectar nas palavras a exactidão, a lógica, a rectidão que não há nas coisas, é a maior e a mais perniciosa de todas as incoerências.» [Ibidem, p.208]

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