Monday, March 23, 2009

O Cesto

«Pela milésima vez me preparo para ir visitar o meu marido ao hospital. [...]
Hoje será como todos os dias: lhe falarei, junto ao leito, mas ele não me escutará. Não será essa a diferença. Ele nunca me escutou. Diferença está na sua marmita que adormecerá, sem préstimo, na sua cabeceira. Antes, ele devorava os meus preparados. A comiuda era onde eu não me via recusada. [...]
Onde eu vivo não é na sombra. É por detrás do sol, onde toda a luz há muito se pôs.»

in O Fio das Missangas, Mia Couto

Tuesday, December 30, 2008

A Velha Casa de João Garcia Miguel

De quantos tons é feito um texto? Quantas cores pode ter uma palavra?

A trama dos significados, dos significantes... e da inesgotável riqueza da linguagem humana.

Palavras de Luiz Pacheco... 5 tons diferentes por Ana Santos, Isa Araújo, João Pedro Santos, Rosa Abreu, Sara Ribeiro. 5 tons que são 5 interpretações... 5 formas de sentir, de ver e de dar a sentir, sob encenação de João Garcia Miguel.

Um mesmo texto são 5 textos. Todos eles diferentes pelas diferentes emoções e experiências que nos transmitem. Todos eles iguais nas palavras que são ditas. Uma palavra são 5 palavras.
Mais uma vírgula na problemática da linguagem, para além de um trabalho teatral interessantíssimo pela criatividade da abordagem e pela promoção da reflexão sobre as dinâmicas de interpretação.
Creio que era Bergson que falava da morte do autor. (Seria? Tenho agora as minhas dúvidas... mas surge-me este nome associado a esta ideia.. e como não sou boa com nomes... deixo o convite à correcção e sigo adiante com as ideias, pedindo as minhas desculpas) O texto múltiplo de sentidos, cabendo a cada leitor o poder de o reescrever em ideias que dele se extraem. A consciência de que cada palavra encerra em si uma multiplicidade inesgotável, irredutível...
Esta peça explora a multiplicidade, dentro de uma linha de coerência interna ao texto, bem marcada -distanciando-se da abordagem surrealista que propõe a dissociação das palavras em relação às coisas. Haverá pequenos esgares de surrealismo, mas essencialmente a linha é marcada em intenção, em transmissão da coisa desvelada pela palavra.

Cada divisão da casa - o quarto da mãe, da criança, a sala verde, a casa de banho e a cozinha - uma encenação diferente, 30 minutos, um actor. A cada meia hora surge na escadaria da Junta de Freguesia de santo Estevão em Lisboa a chamada - quem está para o quarto da mãe? Quem está para a sala verde? De acordo com a ordem cronológica estabelecida na aquisição do bilhete, cada um entra para cada divisão, para cada peça, de acordo com a sequência que lhe foi arranjada - o que abre caminho a uma nova multiplicidade e uma nova reflexão sobre a problemática da intenção associada à da linguagem: como é que a sequência em que experimentamos as 5 diferentes encenações que compõem o todo que é a peça A Velha Casa influencia a nossa visão de cada uma, enquanto espectadores?
Em cada divisão um mesmo texto, um só texto, assume-se como outro através do trabalho de encenação, produção e representação.

Para além do brilhantismo do conceito da peça, destaco o brilhantismo de alguns dos trabalhos de representação... e deixo uma nota na agenda - João Garcia Miguel.. a explorar outros trabalhos, sem dúvida.

Tuesday, November 4, 2008

Janeiro, de Vasco Gato

«é esta a completude dos dias
quando se reunem sobre a cidade
os sossegos da idade já meiga.
são estas as palavras que ficam desde o interior do nosso mais antigo nome.

é o inverno aberto desde janeiro
com as árvores despidas de frio e de spidas e o frio azul,
é o ano que começa no tempo que é nada,
os bolsos que se enchem d mãos,
as casas que parecem mais juntas.

por esta altura estarão a nascer
as horas mais felizes das nossas vidas
- bebemos chá escutando o lume
e amanhã será um dia a menos,
um outro som acrescentado à voz,
um abraço fechando-se até ao amor.»

Vasco Gato, Janeiro, in Um Mover de Mão

[obrigado por teres este autor cá por casa...]

Thursday, October 23, 2008

Na Selva das Cidades, Bertolt Brecht

"O amor, calor dos corpos que se juntam, é a única graça que nos foi concedida nas trevas! Mas a união dos orgãos é a única que existe e não transpõe o abismo da linguagem. Mesmo assim juntam-se para produzir novos seres que possam vir a ajudá-los na sua solidão desoladora. E as gerações olham-se friamente nos olhos. Se se encher um navio até cima com corpos humanos, vai haver dentro dele uma solidão tão grande que todos morrem gelados."

Saturday, October 18, 2008

O Profeta II, de Carlos Bica in Gebhard Ullmann, Essencia

A música começa doce... melodiosa, crescendo em tensão... na força anunciada de um instrumento de sopro... que não consigo identificar (maldito ouvido este meu)... e no silêncio o jogo...
Subtil, profundo... avança em pezinhos de lã sob o som crescentemente agudo do piano... a contrabalançar com o grave do contrabaixo... entre o denso e o subtil... a escavar entre os silêncios...
E no culminar... nova brincadeira... melodia soprada... desconstroi... brincadeira de sons... novo jogo... explorar o som... explorar por dentro... na vibração dos sentidos...

Na Selva das Cidades, Bertold Brecht

"Shlink: Dou-lhe quarente dólares pela sua opinião sobre este livro que eu não conheço, nem me interessa conhecer.
Garga: Eu vendo-lhe as opiniões do mister V. Jensen e do mister Arthur Rimbaud, mas não lhe vendo a minha opinião.
Shlink: E a mim também não me interessa conhecer a sua opinião, só quero comprá-la."

Gostava que na vida real fossemos igualmente claros... todos tentamos por vezes comprar opiniões, pagando-as em sorrisos, em presenças, em vozes certas evitando as erradas... E gostava que todos tivessemos a coragem de dizer não...

Trio Maria Viana + Sheila Jordan, Centro Cultural da Malaposta, 4 Out/08

A vida sentida na ponta dos dedos... no nam nam da voz... as cordas vocais gemidas em palavras... tremidas no traço do não dito... que pende entre as palavras, a dar cor ao sentir... a enchê-lo com memórias...
A vida sentida na alegria... no partilhar... onde o palco não é barreira, e o ritmo sobe... invade...
Ganas de viver... sentida à boa maneira portuguesa: por dentro... a exprimir-se num jazz muito pessoal... Maria Viana na voz e na cara do grupo... com uma voz quente, espírito forte, uma excelente presença em palco... o equílibrio entre a paz, de quem acolhe o sentir com alegria, encaixando peças de um puzzle, e a revolta que desinstala e dá o mote ao criar genuíno, e nos faz sentir como total a sua entrega à música... piano e contrabaixo para mim anónimos [infelizmente].
E como prenda de um aniversário surpresa (comovente querer comemorar o aniversário em palco) Sheila Jordan... com uma voz invulgarmente doce para o meus hábitos ou conhecimentos de jazz... que tornam incrivelmente bela a sua forte expressividade... e cativante uma história forte e vivida, que se pressente em cada marca de idade dos seus já quase 80 anos... que colocam o seu percurso na "era dourada" das grandes vozes femininas (Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Betty Carter...) e o começo de carreira nos conhecidos bares de jazz de Detroit, Michigan [coisinhas que aprendi depois... porque é bom aprender].