Sunday, April 15, 2007

Surrealismo: O Princípio da Liberdade de Criação

O surrealismo ficou conhecido especialmente pela revolução estética que caracterizava as produções artísticas, que sob os ideais deste movimento se trabalharam. As inovações que apresentou no plano da expressão artística assentavam fundamentalmente num campo de total liberdade de criação, em nome da qual se renegavam formas e fórmulas de criação preestabelecidas, e onde tudo continuamente se revelava permitido em nome da afirmação da força criadora da imaginação. Valorizavam poder de expressão que as obras exerciam, como forma de contacto com a complexidade do real e do psíquico humano que desta forma seria progressivamente desvelada e efectivada, o que só faria sentido mediante uma total liberdade de criação, que passava pela despreocupação estética propriamente dita (renegando o regime escolástico em que a arte se “afundava” pela obediência a padrões a que se submetia) e a despreocupação moral. A arte não teria uma função meramente recreativa, nem estaria confinada a supostas etiquetas do que é ou não arte, mas pode revelar-se no mais simples e despretensioso gesto que sirva a ligação com uma dimensão da realidade e do homem “escondida”, uma dimensão a descobrir. E o gesto criador seria assim a sua força vitalícia, aquilo que nela seria de mais fantástico, e não tanto o produto final.
Vejamos por exemplo um comentário tecido à obra de Artur Seixas (surrealista) aquando uma exposição de artes plásticas deste, em Luanda, que aponta nela características que manifestam, no plano deste tipo de arte, alguns ideais do surrealismo:

«Não se trata das abóboras que habitualmente os alunos bem comportados das Belas-Artes costumam trazer até nós, como amostras de uma pintura real (este real tem sempre muito a ver com a semelhança das cebolas, mas nada a ver com o real autêntico). Esta exposição é, antes de mais um desafio à imaginação. O seu real é um surreal (...). Procurar as realidades que a natureza nos oculta, foi uma missão a que Seixas se propôs, procurando, através dos elementos naturalmente objectivos, uma realidade profundamente subjectiva, em que reconhecemos os passos pictóricos que conduzem a um «acto mágico» a construção de uma realidade cuja raiz é o conhecimento.»[ Alfredo Margarido, Diário Popular, 24-15, ed. Para o Ultramar, in Mário Cesariny, A Intervenção Surrealista, p. 277.]

Era de seu parecer que a compreensão do real teria de passar não por qualquer um dos saberes instituídos que normalmente eram vítimas de severas críticas dos adeptos deste movimento, mas pela acção em todos os campos do saber, reunidos para atingir o que denominaram “Real-Imaginário”, que corresponde à ideia de uma totalidade do real, conjecturada no plano da actividade artística. António Maria Lisboa (surrealista português) classifica de um modo especifico esta necessidade de todos os saberes reunidos num saber que visa conhecer, ou travar algum contacto com esta realidade total, no conceito de Metaciência, característico do pensamento deste autor (que conflui com o surrealismo na sua intencionalidade, nos seus ideais de base - António Maria Lisboa é dos que concordando com os princípios do surrealismo, vem a criticá-lo como movimento, pelas contradições internas entre aqueles que são os seus princípios originais e os vícios que se vão instalando nos seus adeptos e que põem em causa esses princípios. A sua particularização de uma ideia comum entre os surrealistas de reunião de todos os saberes, no conceito de Metaciência, corresponde em certa medida apenas a uma individualização do seu pensamento, não a uma forma diferente de ver.). A Metaciência seria assim uma síntese de todas as ciências, «que como os Surrealistas vê o Universo «UNO E MÁGICO»[ Carta de António Maria Lisboa a Mário Cesariny, Três Poetas do Surrealismo, p.155], concordando com o pensamento poético, que seria segundo os surrealistas a verdadeira via para o conhecimento. (A destacar que, por Poesia pretendem designar uma atitude – a atitude poética, e não a forma de expressão particular, poesia. Esta é também uma via para a compreensão, mas não pretendem elevá-la como preferencial numa espécie de escala das artes... O Poeta é em geral o homem das artes, no sentido em que é aquele que dá atenção a uma parte especial do ser humano, explorando-a.)

«A Metaciência pretende entre outras coisas dar ao Homem, ao Poeta a sua posição no Centro da Esfera deste Universo, que é o mesmo que dizer fazer com que o Poeta possua no seu cérebro todos os raios da esfera deste universo.(...)
«Os Poetas são os únicos «filósofos» que podem dizer o que falta (dizer e saber) – à «fixação da realidade» prefere-se uma cada vez mais funda e vertiginosa, mais funda e vertiginosa, mais funda e vertiginosa [repetição do próprio autor] conquista do conhecimento do homem que o mesmo é dizer do universo, pois este é a projecção do Homem e o Homem a Concreção do Universo a um Ponto.
(...)
«A Metaciência é ainda a realização do Pensamento Poético e do conhecimento Poético!»[ Ibidem, p.157.]

A designação de Real-Imaginário foi encontrada no Comunicado dos Surrealistas Portugueses datado de Abril de 1950, emitido em Lisboa, sob a assinatura de Mário Henrique Leiria, João Artur Silva e Artur do Cruzeiro Seixas (a este último transcreveu-se mais acima um comentário à sua obra no domínio das artes plásticas), publicado actualmente na obra Três Poetas do Surrealismo. Contudo designa um lugar comum das crenças surrealistas, de conjugação do plano da simples realidade que é, a realidade substancial, com a realidade fundamentada na força da imaginação, podendo ser também encontrada em diversos textos de outros autores surrealistas, embora não sob o enunciado deste neologismo que liga pelo hífen os dois conceitos exprimindo a sua conjugação na ideia de uma totalidade, comum ao pensamento surrealista (veja-se aliás o sentido etimológico da própria palavra – super-realismo, que designaria uma sobre-realidade, como frequentemente a designam os surrealistas).
Com o Real-Imaginário pretende-se exprimir precisamente esse ponto de encontro entre os dois pólos da realidade, os dois hemisférios do Sonho e da Realidade (substancial), em que a imaginação deixa de contrastar com a realidade, como se a desfigurasse ou fosse uma simples abstracção de carácter emotivo ou recreativo, mas se liga nela na ideia de uma realidade total, que deve ser o seu objecto de conhecimento. Os princípios de criação surrealistas inscrevem-se precisamente no objectivo da conquista progressiva desta totalidade pela consideração das suas partes contraditórias, em vez de optar por anula-las na consideração especifica de um saber. A atitude a tomar perante algo que se visa conhecer não será a de procurar defini-lo, ou extrair dele algum critério de uma suposta verdade. Não será a atitude de fixação desse algo no conhecimento que se possa extrair dele, mas descobrir os caminhos que esse algo nos abre, e percorre-los sem as preocupações de linearidade (em que se inscrevem as preocupações com a moral, ou qualquer código social), ou os medos da loucura[O surrealismo concorda, no que diz respeito à forma de encarar a loucura, com as noções de loucura do movimento de anti-psiquiatria. É de seu parecer que a loucura é apenas um desrespeito pelos modos, socialmente aceites, de comportamento. Os loucos seriam vítimas da sua imaginação, mas no sentido em que o elevado desenvolvimento desta (o que não é negativo) os leva à inobservância de certas regras aceites pela sociedade em que vive, que o homem valoriza ao ponto de desconsiderar (e o conceito de loucura, bem como o internamento dos loucos, serviria precisamente para isso) aqueles que as desconsideram.].

«Quero que se calem quando deixam de sentir.»[ André Breton, Manifestos do Surrealismo, p.31.]

Designar-se-ia deste modo uma surrealidade, que seria portanto esse género de realidade total em que estes hemisférios estariam ligados, completando-se. A realidade como é deixa escapar todas as suas potencialidades, aparecendo aos adeptos do surrealismo[Qualquer surrealista seria mais precisamente apenas um adepto do surrealismo, pois que o surrealismo era contra qualquer tipo de academismo, e neste sentido os artistas surrealistas mantinham ainda uma determinada independência relativamente ao movimento, embora realizassem frequentemente, nomeadamente no trabalho de escrita, actividades em conjunto. Contudo visavam com estas apenas um aprofundamento pessoal de cada um, a fim de um melhoramento próprio, e desta forma um melhoramento geral da própria actividade surrealista. Apesar da preocupação central com o individual, e a manutenção de uma liberdade e consciência individual, o surrealismo não nega a existência de uma consciência colectiva, apenas defende que esta terá de partir do individual, das consciências particulares, e não impor-se-lhes, e manter ainda a liberdade de acção movimento de cada um dos seus componentes. Daí as suas críticas acérrimas às preocupações racionais, morais e estéticas, que entendiam como limitadoras da actividade do indivíduo, e fixadoras de modos de ver e fazer, e o seu desejo de revolucionar a sociedade, sem que contudo se preocupem em apresentar ideais e valores alternativos que não seja aquele pelo qual fazem a revolução – a liberdade.] como redutora, esquecendo o sujeito que a contempla. Por outro lado, dever-se-ia instruir uma atitude materialista como reacção contra «algumas tendências irrisórias do espiritualismo»[ André Breton, Manifestos do Surrealismo, p.28.], desde que esta mantenha ainda possível a elevação do pensamento. Ou seja o que se pretende não é simplesmente uma atitude de abstracção perante a realidade substancial, a realidade formalizada no que é (naquilo que é) efectivamente ou pelo menos tradicionalmente, o que acontece é que essa abstracção é necessária para o conhecimento.

«A Obra surrealista continua a ser, para que seja, não um arranjo ou procura estética ou, como ouvi, um “materializar de emoções puras”, mas uma conquista no domínio do conhecimento e da acção.» António Maria Lisboa.[ Declaração de Princípios (emitido em Lisboa em 1975), in Três Poetas do Surrealismo, p.183. ]

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